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Moral sexual, homossexualidade e arte

  • Foto do escritor: Hugo Francisco Ramos Nogueira
    Hugo Francisco Ramos Nogueira
  • 25 de fev. de 2019
  • 23 min de leitura

“Ele vai me forçar a pensar que os homossexuais têm mais imaginação do que... os outros? Não, mas eles são convocados a exercê-la com mais frequência” André Gide


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No texto Moral Sexual ‘Civilizada’ e Doença Nervosa Moderna (1908) Freud afirma que: “A constituição das pessoas que sofrem de inversão – os homossexuais – distingue-se amiúde pela especial aptidão do seu instinto sexual para a sublimação cultural” (p. 176)[1].

O objetivo deste trabalho não é verificar se a hipótese de Freud é verdadeira ou falsa porque isto seria impossível, não há como saber se há mais artistas homossexuais do que heterossexuais. O objetivo é ler nas entrelinhas da afirmação de Freud. É realmente possível estabelecer uma relação entre homossexualidade e criação artística através da psicanálise? Consequentemente, como um estudo como este pode contribuir para a análise de obras de arte?

Freud nos Três Ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905) elabora as suas teorias a partir de um diálogo com a sexologia da sua época. Entre essas teorias encontramos a ideia de que os homossexuais têm uma capacidade maior para a sublimação artística. Na realidade, essa ideia nem é uma ideia original de Freud, ela é fruto do seu diálogo com sexólogos. Kraft-Ebing, um dos sexólogos com quem Freud dialoga nos Três Ensaios sobre a teoria da sexualidade já tinha afirmado isso no seu livro Psicopatia Sexualis, segundo ele, os uranistas sofrem “na maioria dos casos, anomalias psíquicas (disposição brilhante para a arte, especialmente música, poesia, etc.).” (Fry, 1983, p. 64).

Freud diz nos Três Ensaios sobre a teoria da sexualidade que encontramos a inversão (homossexualidade)

em pessoas que que não exibem nenhum outro desvio grave da norma [e] em pessoas cuja eficiência não está prejudicada e que inclusive se destacam por um desenvolvimento intelectual e uma cultura ética particularmente elevados [além disso] nos povos antigos, no auge de sua cultura, a inversão era um fenômeno frequente, quase que uma instituição dotada de importantes funções (1905, p. 17)[2].

E na mesma página ele acrescenta em uma nota: “convém admitir com os porta-vozes do ‘uranismo’ que alguns dos homens mais destacados de que temos noticia foram invertidos, talvez até invertidos absolutos” (Ibid., p. 17)[3]. Freud, portanto afirma que a ideia de que os homossexuais têm uma capacidade de sublimação cultural maior na realidade não é sua. Essa ideia já tinha sido exposta não só por Kraft-Ebing mas também por Havelock Ellis que escreveu Inversão Sexual em 1896 e de quem Freud tomou a ideia de “inversão sexual” (atração inata entre pessoas do mesmo sexo) e “homossexualidade” (todo tipo de atração sexual entre pessoas do mesmo sexo, inclusive, por exemplo, entre presos). Para exemplificar a “inversão sexual”, Ellis citou a sua presença na Roma Antiga e em homens com uma capacidade intelectual excepcional como Michelangelo, Whitman, Muret e Verlaine (Stockton, 1994, p. 275). Encontra-se aqui, portanto, a base sobre a qual Freud apoiou as suas ideias sobre a relação entre homossexualidade e arte.

O “uranismo” a que Freud se refere na nota foi um termo criado por Karl Heinrich Ulrichs utilizado no século XIX para designar a homossexualidade. Ulrichs considerava a homossexualidade inata e o termo “uranista” foi depois adotado por poetas do final do século XIX na Inglaterra para designar o amor homossexual e em particular a pederastia (relação entre um homem mais velho e um homem mais novo). Karl Heinrich Ulrichs foi em 1864, na Alemanha, o primeiro a reivindicar o fim da perseguição aos homossexuais e foi declarado louco pelo manual de medicina legal (Mosse, 1985, p. 136).

A pederastia não esteve presente apenas na Roma Antiga e na Grécia Antiga. Artistas como Whitman, Michelangelo, Verlaine, Leonardo da Vinci, Shakespeare, Goethe e Gide também foram pederastas (Menasco, 1993, p. 674).

Freud diz em uma nota que

Na conceituação da inversão, os pontos de vista patológicos foram deslocados pelos antropológicos. O mérito dessa mudança cabe a I. Bloch, autor que também destacou expressamente a ocorrência da inversão dos povos civilizados da Antiguidade (1905, p. 17)[4].

O que Freud não diz, mas, é interessante observar é que Bloch acreditava que as vibrações da modernidade levavam à homossexualidade e as cidades grandes eram as culpadas pela “doença nervosa” (Mosse, 1985, 136). Bloch acreditava que a homossexualidade era adquirida e não resultado de causas biológicas como sugeria Hirschfeld. No início ele defendia que a homossexualidade podia ser prevenida e tratada. Crianças não deviam ter acesso à literatura homossexual. Ele também defendia o Parágrafo 175 do direito alemão que declarava que todas as relações homossexuais eram ilegais. Cada homossexual era um potencial criador de novos homossexuais.

Só em 1908 Bloch mudou sua atitude em relação à homossexualidade e passou a classificar a homossexualidade em homossexualidade real (inata) e homossexualidade falsa (comportamento adaptado). Passou a defender então que a maioria dos homossexuais é saudável, não sofre de doenças genéticas e são fisiologicamente e psicologicamente normais. Ele escreveu que o stress que ele diagnosticou em muitos homossexuais era consequência do isolamento social e da discriminação e não da homossexualidade. Tornou-se também um dos psiquiatras que defenderam o fim do Parágrafo 175 e propôs que homossexuais famosos “saíssem do armário”, isto é, assumissem a sua homossexualidade, como forma de combater os preconceitos da sociedade (Schüklenk, 2000, p. 126).

É este segundo momento de Bloch que influenciou Freud, pode mesmo ser dito que o fato de Freud nomear homossexuais famosos foi uma forma de tirar do armário figuras importantes, como Leonardo da Vinci e Michelangelo, de forma a combater os preconceitos da sociedade, como sugeriu Bloch, isso está evidente na carta que ele escreveu em 1935 para a mãe de um jovem homossexual que buscava a sua “ajuda”, mas, também, na própria afirmação de que os homossexuais têm uma capacidade maior de sublimação, o que lhe confere um caráter político.

Vigorava na Alemanha da época de Freud, o Parágrafo 175, uma lei que desde 1870 determinava que o sexo entre dois homens devesse ser punido com a prisão até quatro anos e a perda da cidadania (Giersdorf, 1993, p. 660). Entre 1933 e 1945, com o advento do nazismo, 100.000 homens foram detidos por homossexualidade. Alguns foram para prisões e outros para os campos de concentração. Destes cerca de 4.000 sobreviveram. Hoje, menos de dez desses homens estão vivos. Cinco deles contaram as suas histórias pela primeira vez no filme Parágrafo 175 e relataram torturas e execuções. Também foi escrita uma peça Bent inspirada na experiência dos homossexuais em campos de concentração, a qual também foi adaptada para o cinema.

Na Inglaterra, o homossexualismo também era proibido e ficou famoso o julgamento e a condenação do escritor Oscar Wilde em 1895 a dois anos de prisão com trabalhos forçados, sob a acusação de praticar sodomia com Lord Alfred Douglas (que criou a expressão “o amor que não ousa dizer o seu nome” para se referir à homossexualidade em um poema). Wilde era um dramaturgo de sucesso e sua humilhação pública provocou um escândalo, que segundo Fry iria retardar em muitos anos “o desenvolvimento da emancipação homossexual naquele país, que já era anunciada pelos trabalhos de Havelock Ellis e Edward Carpenter” (1983, p. 82).

No Brasil, a homossexualidade per se nunca foi definida como crime no Código Penal, mas na década de 1930 havia uma conivência entre a polícia e médicos, a qual enviava os delinquentes homossexuais de uma certa classe social para o Laboratório de Antropologia Criminal do Instituto de Identificações de São Paulo, onde os médicos pesquisavam as causas biológicas e sociais da homossexualidade, com ênfase sobre os biotipos e ambiente social dos indivíduos em questão (Fry, 1983). A consequência disso é que

a medicina legal se achava no direito de sugerir ‘ação médico-correcional’ para os delinquentes, além de punição do crime específico de que eram acusados [e] a liberdade de um homem poderia estar na dependência de um parecer deste tipo nos conselhos carcerários existentes em cada estado brasileiro (p. 69).

O que mudou 100 anos depois que Freud escreveu o seu texto sobre a moral sexual? Recentemente esteve no Brasil a escritora americana Camille Paglia e ela afirmou em uma entrevista que existe uma pressão do movimento gay nos EUA para um ensino dentro das escolas que leva as crianças a se assumirem como gays de forma cada vez mais precoce. Ela diz que o efeito disso é que dessa geração de crianças não vai surgir um novo Tennessee Williams (dramaturgo homossexual americano). Segundo ela, foi a censura da época que fez com que o dramaturgo vivesse no “mundo real” (aspas nossas) e por isso teve que desenvolver um grande conhecimento sobre as mulheres.

Seguindo o raciocínio de Paglia, foi porque o dramaturgo não podia escrever abertamente sobre a homossexualidade, que ele criou personagens femininos e é nisto que reside a grandeza da sua obra. Nas palavras da própria escritora:

Antes de 1969 o mundo gay era muito fechado, reprimido, o que obrigava os gays a lidarem com mulheres heterossexuais, entendê-las. Tennessee Williams era gay, mas vivia no mundo real, heterossexual. Por isso ele foi capaz de peças com enorme alcance artístico (Marreiro, 2007).

Camille refere-se ao ano de 1969 porque este é considerado o marco do início do ativismo gay devido ao conflito que teve início no bar Stonewall cuja maior freqüência era de travestis. Este bar era constantemente invadido pela polícia que humilhava os frequentadores e extorquia dinheiro, sendo que neste dia em 1969, esses freqüentadores reagiram e deram início a um confronto com a polícia. Há depoimentos de que eles reagiram porque estavam tristes com a notícia da morte da cantora Judy Garland, uma cantora muito querida pelos homossexuais, inclusive uma maneira cifrada de se dizer homossexual nos EUA já foi se dizer um amigo da Dorothy (personagem interpretado por Judy Garland no filme The Wizard of Oz).

A história deste conflito contada a partir de depoimentos de alguns dos frequentadores do bar que participaram do conflito está documentada no livro Stonewall de Duberman (1993), o qual também foi adaptado para o cinema. Em 1970, o conflito foi lembrado com uma parada que deu origem às paradas do orgulho gay que atualmente acontecem no mundo inteiro.

No Brasil, em 1980 aconteceu uma passeata de mil pessoas em São Paulo para protestar contra a violência de um delegado de polícia José Wilson Richetti (Fry, 1983, p. 28), mas a primeira parada de maior vulto aconteceu no Rio de Janeiro no ano de 1995, ao término de uma conferência da International Lesbian and Gay Association (ILGA) que acontecia pela primeira vez no Brasil, onde na abertura da conferência, Martha Suplicy apresentou seu projeto de união civil entre homossexuais (ainda não aprovado até o momento).

Simultaneamente à parada foi lançada a revista Sui Generis, a primeira revista brasileira destinada ao público homossexual não pornográfica. A experiência anterior mais significativa nesse sentido foi o jornal Lampião que circulou de 1978 a 1980 (Fry, 1983, p. 21). A revista também teve uma vida curta (nos Estados Unidos a revista Advocate que tem um formato semelhante, já completou 40 anos) e só em 2007 surgiu uma nova revista brasileira não pornográfica, com artigos culturais, a Junior. A parada brasileira, que teve início no Rio de Janeiro, espalhou-se para outras cidades brasileiras e a de São Paulo tornou-se a maior parada do mundo.

Voltando à Paglia, ela tem uma companheira, de quem ela registrou o filho como mãe, mas, não se define como lésbica. Ela também diz que quando era jovem acreditou que a maneira de lidar com as ambiguidades da sua sexualidade era tomando hormônios masculinos (o que segundo ela está acontecendo com maior frequência nos EUA entre as meninas devido à “pressão gay” de ativistas como Judith Butler, escritora homossexual americana), mas que ao invés disso, tornou-se escritora.

Camille é famosa por despertar polêmicas. Sua posição aparece aqui como estímulo ao pensamento, no entanto as inconsistências do seu pensamento são evidentes. Ela tem uma companheira, mas, não se identifica como lésbica. Ela afirma que o que ela chama de “pressão gay” defende um assumir-se gay e que a consequência de assumir-se gay é tomar hormônios. Essa equivalência entre ser homossexual significa querer ser de outro sexo remete a uma sexologia pré-freudiana.

A teoria queer a despeito das suas divergências com a psicanálise não faz a confusão que Paglia faz. Essa confusão entre homossexuais e transgêneros é da própria Camile e contraria tanto a psicanálise quanto a teoria queer.

É importante dizer que o fato deste trabalho fazer uma distinção entre homossexuais e transgêneros, não está com isso fazendo nenhum juízo moral ou mesmo classificação diagnóstica entre homossexuais e transgêneros. Essa classificação é mais uma questão psiquiátrica e, sobretudo política.

Outro ponto de inconsistência das afirmações de Paglia é em relação ao que ela chama de mundo real, o que ela chama de: “mundo real, heterossexual”. Essa referência dela a um mundo real, o qual seria heterossexual levanta duas questões, o que é o mundo real? Por que este mundo real é heterossexual? A análise do contexto em que Paglia fez a sua afirmação: uma crítica a uma suposta “pressão gay” nas escolas, permite dizer que o que Paglia chama de mundo real, neste caso, são as escolas e a presença de ativistas gays ou do seu pensamento dentro dessas escolas. Não é desta realidade que a psicanálise trata, a realidade da psicanálise é outra, uma realidade psíquica, ainda que essa realidade das escolas e do que é nelas ensinado possa ter uma repercussão sobre a realidade psíquica de alguns sujeitos, mas, essa repercussão não pode ser generalizada dessa forma.

Cabe também perguntar, por que ela afirma que o mundo real é heterossexual? Porque esta é a moral sexual “civilizada” da nossa época (e desde a época de Freud)? Paglia parece considerar que essa moral sexual “civilizada” é um fato da “natureza”. O que ela parece defender na realidade é a ideia de dois gêneros: macho e fêmea, onde um é naturalmente destinado ao outro, na contramão do questionamento da dicotomia dos gêneros proposta pela teoria queer.

Seguindo o raciocínio de Paglia, um macho cujo “objetivo sexual foi defletido do sexo oposto” (utilizando os termos de Freud, 1905, p. 175) teria que tomar hormônios femininos para se converter em fêmea e ter acesso ao seu objetivo sexual. Esse tipo de proposta não se encontra em Freud, como diz Marques:

o desejo do sujeito e o corpo biológico do sujeito não estão intimamente relacionados, isso se dá pela plasticidade pulsional, a qual, tem como único objetivo a satisfação. Desta forma, podemos considerar que a pulsão não reconhece a anatomia do corpo e que seu desejo se dá independente deste. Assim, se prosseguirmos nesta linha de raciocínio, poderemos verificar que a escolha de objeto não tem nenhuma relação com a anatomia do sujeito e muito menos com a identidade sexual psíquica deste mesmo sujeito. Ou seja, um homem biológico posse do pênis), que se situa ou se reconhece como homem enquanto sua identidade sexual psíquica tem como possibilidade de escolha um homem biológico ou uma mulher biológica para ocupar o lugar de seu desejo de satisfação enquanto objeto de amor. Então, não temos nenhuma relação que resulte de uma posição feminina ou masculina, definida a partir do sexo biológico de seu objeto de escolha [...] ‘Masculino’ e o ‘Feminino’ [estão] relacionados à dinâmica pulsional, na qual, o sujeito se posiciona perante o desejo e os objetos escolhendo, ora o movimento de amar e ora, o de ser amado. Logo, podemos concluir que um sujeito, homem ou mulher biológico (pênis/vagina), independente de sua identidade sexual psíquica - enquanto interpretação do desejo do Outro – como homem ou mulher, sempre terá uma libido ativa como força motriz de sua vida sexual, desvinculada de sua finalidade pulsional - enquanto dinâmica - ter um maior objetivo masculino/amar ou feminino/ser amado, por um objeto biologicamente definido como homem ou mulher (2007).

O que a vida de Paglia, que ela tornou pública, com a sua companheira revela na realidade é que a sua homossexualidade não estava ligada a ser transgênero, que ela vive sua homossexualidade sem ser transgênero, o que apenas confirma que são duas questões distintas. Há um lado nas afirmações de Paglia, no entanto que parece confirmar a hipótese de Freud proposta no texto sobre a Moral Sexual quando Paglia afirma que tornar-se escritora foi uma forma de resolver as suas ambiguidades, as quais ela identifica como ser ou não transgênero, mas, que pode ser lido como ser homossexual, ela está se apresentando como um exemplo da afirmação de Freud, de que os homossexuais têm uma capacidade maior para a sublimação cultural.

O antropólogo Peter Fry também defende essa ideia de que os homossexuais por sentirem a necessidade de investigar a estranheza que sentem em relação à maioria das pessoas ao seu redor acabam por desenvolver uma curiosidade intelectual maior em relação aos fenômenos do mundo em geral (Fry, 1983).

Quebrar com as convenções sociais de masculinidade e feminilidade, que são tão fortemente arraigadas em qualquer sociedade, requer, de início, uma boa dose de coragem e de originalidade […] Ambiguidade é sempre uma possível fonte de criatividade […] entre as qualidades mais frequentemente atribuídas à identidade de ‘bicha’ estão a criatividade, a sensibilidade artística e o humor, como se fossem propriedades naturais. Mas estas características que realmente são comuns a muitas bichas, o são justamente porque há uma relação importante entre a criação artística, a ambiguidade, o humor e uma visão crítica da sociedade (pp. 57-58).

O argumento de Fry está baseado na idéia de que o estigma social coloca os homossexuais fora dos centros formais de poder social. Os homossexuais ocupam

uma posição estrutural às margens da sociedade da qual é pelo menos possível uma visão crítica das coisas. Neste sentido, convém lembrar que a criatividade e um humor mordaz e venenoso também são associados a outros grupos marginalizados e estigmatizados socialmente como os negros e os judeus (p. 58).

Freud falou sobre um humor especificamente judaico. É possível também falar sobre um humor especificamente homossexual. Susan Sontag chama esse humor de camp, termo que ela retirou do romance O mundo ao anoitecer do escritor Christopher Isherwood. Levando em consideração que Freud disse que o seu texto sobre o humor é o seu texto mais revelador sobre a sua compreensão de como a arte produz o seu efeito, esse humor camp não pode ser ignorado em um estudo sobre homossexualidade e arte. Se os homossexuais tem um humor específico então cabe a pergunta: os homossexuais têm uma sensibilidade específica? Há algo que distinga a arte produzida pelos homossexuais da arte produzida por heterossexuais?

Jack Babuscio defende que a chave para entender o que ele chama de uma estética camp está na necessidade que os homossexuais têm de se disfarçarem de heterossexuais:

A experiência de se disfarçar de heterossexual frequentemente produz uma sensibilidade gay. Ela pode e frequentemente produz uma sensibilidade e uma apreciação pelo disfarce [e pelas distinções] entre um comportamento instintivo e um comportamento teatral (Dyer, 1987, p. 154)[5].

Segundo Richard Dyer (1987), o que a descrição da sensibilidade homossexual feita por Babuscio revela é uma sensibilidade capaz de unir qualidades contraditórias: autenticidade e teatralidade e ele acrescenta intensidade e ironia, afirmação de sensibilidade e do absurdo da mesma. É, portanto uma sensibilidade constituída de paradoxos: paixão com ironia, vida no limite, dramatização da experiência e força e sofrimento. Sensibilidade que ele identifica nos compositores: Cole Porter e Noel Coward e nas cantoras: Billie Holiday, Edith Piaf, Shirley Bassey, Barbra Streisand e Diana Ross. Sendo que a imagem de Judy Garland é a mais associada aos homossexuais (pp. 154- 155).

Dollimore (1991) apresenta Oscar Wilde como um exemplo dessa sensibilidade camp, que reúne paradoxos:

O anárquico e o político, a raiva e o tédio, todos estão presentes na estética transgressora de Wilde, principalmente quando as estratégias de sobrevivência da subordinação (o subterfúgio, a mentira e a evasão) são esteticamente transformadas em armas de ataque, mas sempre de forma oblíqua através da ironia, da ambiguidade, da mímica e da imitação (p. 310)[6].

Dollimore (1991) também acrescenta que

O camp é o ponto de transformação das categorias da teatralidade, da ironia e do senso de absurdo da sensibilidade extrema nas categorias de autenticidade, intensidade e afirmação da sensibilidade extrema, de modo que estas se permanecem, elas o fazem de maneira modificada (p. 311)[7].

Dyer (1987) diz que um estudo sobre uma sensibilidade homossexual é muito difícil, mas que não deve ser abandonado, porque demonstra um esforço para entender formas particulares de sentir, um campo pelo qual a semiótica não demonstra muito entusiasmo.

No caso das cantoras, ele diz que a atração que elas exercem sobre os homossexuais está ligada ao fato de elas cantarem o desejo por homens e a dor dos relacionamentos fracassados. Os homens não podiam e ainda não é comum encontrar homens que cantem sobre essas coisas e também porque homossexuais frequentemente se pensam em uma “posição feminina” por desejarem outros homens (p. 1987).

A sensibilidade camp segundo Dollimore (1991)

Se situa no ponto de emergência do artificial a partir do real, da emergência da cultura a partir da natureza – ou ainda do ponto onde o real se transforma em artifício, a natureza em cultura, o camp restaura a vitalidade do artifício e vice-versa, derivando a forma artificial e a oferecendo novamente para o real ou como o real. A realidade é o prazer do que não é real. O primado da fantasia [...] o camp sabe e extrai prazer do fato de que o desejo é culturalmente relativo (p. 312)[8].

A escritora Willa Carther dá um belo exemplo desse tipo de sensibilidade no seu conto Paul’s Case em que ela descreve a fuga de um jovem homossexual para a cidade grande. Paul não escondia de ninguém a sua maneira de ser, ele se vestia de forma extravagante e era efeminado. O seu sonho era visitar o Mediterrâneo, que na sua época era a Meca dos homossexuais, onde gerações de homossexuais, segundo Robert Aldrich (2000), buscavam uma fonte de antecedentes históricos e de legitimação cultural para a sua sexualidade, lembrando a Grécia Antiga (p. 583).

O conto é ao mesmo o disfarce de um relato autobiográfico e uma maneira da autora de expressar suas opiniões sobre a homossexualidade. Ela disse em uma carta que as impressões de Paul sobre New York refletiam as suas próprias primeiras impressões sobre a cidade. Não há nada explícito em relação à homossexualidade de Paul, mas, as alusões são tantas que não há como negá-la, sobretudo nas evidências de uma sensibilidade camp.

Cather descreve Paul como um dandy e os dandies segundo Jessica Feldman (2000) ocupam o espaço fora das categorias sociais de masculino e feminino, revolução e repressão, excesso material e ascese espiritual, natureza e artifício e mundo exterior e mundo interior (p. 241).

O interesse de Paul por flores também é uma evidência da sua homossexualidade, ele usa um cravo vermelho na lapela, Wilde usava um cravo verde, e ele manda o mensageiro comprar flores para que ele possa decorar o quarto do hotel, sendo que o seu interesse maior é pelas flores de estufa, capazes de enfrentar o tempo frio. Aqui a sensibilidade camp está bem explícita, o artificial tem um valor maior do que o natural, segundo Ed Madden (2000): as flores de estufa representam o triunfo do estético, do cultural e do artificial sobre o sentimental e o natural – estabelecendo ou dando substância aos estereótipos sexuais de interesse pela estética, privilégio cultural e artificialidade (p. 332).

Cather era muito discreta na sua vida particular, mas, gostava muito desse conto, ele foi o único dos seus primeiros contos que ela permitiu que fosse reimpresso repetidas vezes. Provavelmente ela pensava que era importante que outros jovens como Paul lessem o conto, a arte produzida por homossexuais às vezes tem esse caráter político.

Susan Sontag também defende que os homossexuais são criadores não apenas de obras de arte, mas, de sensibilidades:

Os judeus e os homossexuais são as duas minorias que se destacam em termos de criatividade na cultura urbana contemporânea. Criatividade no sentido verdadeiro: eles criam sensibilidades. As duas forças pioneiras da sensibilidade moderna são a seriedade moral judaica e a estética e ironia dos homossexuais (apud Dollimore, 1991, p. 307).

No entanto um estudo sobre uma sensibilidade homossexual levanta várias questões de difícil solução:

Esta sensibilidade é transcultural ou é historicamente enraizada nas várias histórias da representação da homossexualidade? Ela é uma expressão direta da homossexualidade ou uma expressão indireta da repressão e ou sublimação? Ela é definida a partir da sexualidade do indivíduo que a expressa ou a possui – e isso significa que um heterossexual não é capaz de expressá-la? [...] de certa maneira a própria noção de uma sensibilidade homossexual já é uma contradição (Dollimore, 1991, p. 308)[9].

Oscar Wilde disse que só existe dois tipos de arte: a má arte e a boa arte e o fotógrafo Robert Mapplethorpe cuja obra seria um exemplo perfeito da sensibilidade gay, visto que, ele era gay e só fotografou homens nus e homens fazendo sexo entre si, recusava tanto que sua obra fosse considerada arte erótica quanto ser considerado um artista gay. Ele considerava as duas classificações formas de desqualificar o seu trabalho. Segundo ele, a arte ou é arte ou não é arte.

No entanto, enfrentar a contradição de uma sensibilidade gay é uma tarefa da qual esse trabalho não pode se eximir, visto que, a hipótese freudiana de que os homossexuais tem uma capacidade maior para a sublimação artística tem como consequência lógica a atribuição aos homossexuais de uma sensibilidade específica.

Dollimore propõe que

A busca pela natureza de uma sensibilidade gay seja produtivamente redirecionada para a exploração das limitações da estética tal como é convencionalmente entendida, principalmente em relação à maneira como a estética é apresentada como algo que transcende o social e o político, o que acaba servindo como apoio à proposta de que a discriminação é a essência da cultura (p. 312)[10].

Na realidade, o próprio Freud rompeu com a dicotomia entre homossexualidade e heterossexualidade, o que coloca abaixo a sua própria hipótese de que os homossexuais teriam uma capacidade maior de sublimação. Na carta que ele escreveu para uma mãe preocupada com a possível homossexualidade do filho, Freud descreve a homossexualidade nem como uma vantagem, nem como uma desvantagem, isto é, a homossexualidade em sua essência não é muito diferente da heterossexualidade[11]:

A homossexualidade não é uma vantagem, evidentemente, mas nada há nela de que se deva ter vergonha: não é um vício nem um aviltamento, nem se pode qualificá-la de doença; nós a consideramos uma variação da função sexual provocada por uma suspensão do desenvolvimento sexual. Diversos indivíduos sumamente respeitáveis, nos tempos antigos e modernos, foram homossexuais, e dentre eles encontramos alguns de nossos maiores homens. (Roudinesco & Plon, 1998, p.353).

Além disso, Freud diz no texto sobre Leonardo da Vinci:

A investigação psicanalítica opõe-se com toda firmeza à tentativa de separar os homossexuais dos outros seres humanos como um grupo de índole singular. Ao estudar outras excitações sexuais além das que se exprimem de maneira manifesta, ela constata que todos os seres humanos são capazes de fazer uma escolha de objeto homossexual e que de fato a consumaram no inconsciente. [...] A psicanálise considera, antes, que a independência da escolha objetal em relação ao sexo do objeto, a liberdade de dispor igualmente de objetos masculinos e femininos, tal como observada na infância, nas condições primitivas e nas épocas pré-históricas, é a base originária da qual mediante a restrição num sentido ou no outro, desenvolvem-se tanto o tipo normal como o tipo invertido. No sentido psicanalítico, portanto, o interesse sexual exclusivo do homem pela mulher é também um problema que exige esclarecimento, e não uma evidência indiscutível que se possa atribuir a uma atração de base química. (pp.137-138).

Em nenhum momento Freud propõe uma “conversão” da homossexualidade em heterossexualidade. Freud, portanto tinha uma posição muito distinta da exposta no periódico Medical World New, de 25 de setembro de 1970, o qual anunciou uma técnica de queimar, através de choques elétricos, uma pequena seção do hipotálamo. Método usado em vários jovens americanos homossexuais, na sua maioria pedófilos, que dessa forma teriam sido reconduzidos à “normalidade”. Sem levar em consideração o fato de eles perderem a capacidade de fantasiar e de sentirem prazer sexual (Fry, 1983, p. 72).

Este provavelmente não é mais um procedimento empregado, mas, outro procedimento descrito por Fry (1983), a castração de homossexuais presos por crimes sexuais ainda é corrente, a chamada castração química. Fry diz que a “cura” proposta por esses procedimentos não significa aumentar a capacidade de sentir prazer em viver, o que eles chamam de “cura” não passa de um eufemismo para punição (p. 72). A carta de Freud para a mãe do jovem homossexual deixa bem claro que ele não propõe uma cura específica para homossexuais, que a cura da psicanálise é uma só, semelhante ao que Fry definiu como sendo a verdadeira cura, harmonia, paz de espírito e uma atividade plena (p. 347).

Além disso como disse Judith Butler (2003):

se a proibição cria a ‘cisão fundamental’ da sexualidade [...] então deve haver uma divisão que resista à divisão, uma [...] bissexualidade intrínseca [postulada por Freud] que mina todo e qualquer esforço de separação (p. 88).

A reflexão sobre as mudanças moral sexual desde que Freud escreveu sobre a mesma é importante e serve de fundo para análise proposta por este trabalho, mas é importante destacar, que segundo Freud, o desenvolvimento da pulsão não coincide com as mudanças na moral sexual são dois “desenvolvimentos” distintos.

Freud (1905) diz que considerando o desenvolvimento da pulsão do autoerotismo à primazia dos genitais, podemos distinguir três estágios de civilização:

Um primeiro em que a pulsão pode manifestar-se livremente sem que sejam consideradas as metas da reprodução; um segundo em que toda pulsão é suprimida, exceto quando serve ao objetivo da reprodução; e um terceiro no qual só a reprodução legítima é admitida como meta sexual ( p. 175).

É a esse terceiro estágio que corresponde a moral sexual “civilizada”. Freud (1905) neste texto faz uma crítica à moral sexual “civilizada” da sua época e é por isso que ele põe “civilizada” entre aspas. Freud vai dizer que mesmo se tomarmos em consideração o segundo estágio, muitos indivíduos não se acham, devido à sua organização, capacitados a satisfazer suas exigências: “Em toda uma série de pessoas o amor objetal com seu objetivo de união dos genitais, não se realizou de forma perfeita e completa” (p. 175). Entre esses indivíduos encontram-se em primeiro lugar:

as diversas variedades de perversos, nos quais uma fixação infantil a um objetivo sexual preliminar impediu o estabelecimento da primazia da função reprodutora, e os homossexuais ou invertidos, nos quais, de maneira ainda não compreendida, o objetivo sexual foi defletido do sexo oposto ( p. 175).

A respeito desses indivíduos Freud diz que:

os efeitos nocivos desses dois gêneros de distúrbios do desenvolvimento são menores do que seria de esperar (devido) à complexa constituição da pulsão, que possibilita à vida sexual do indivíduo atingir uma forma final útil, mesmo que um ou mais componentes da pulsão tenham sido alijados do seu desenvolvimento (rumo à reprodução) (p. 175).

Em seguida é que Freud afirma que os homossexuais tem uma capacidade maior para a sublimação cultural. O que se percebe é que Freud está de certa forma defendendo os homossexuais. Não só “os efeitos nocivos [da homossexualidade] são menores do que se deveria esperar”, mas os homossexuais tem até mesmo uma capacidade maior para a sublimação cultural.

Hoje em dia é fácil criticar a posição do Freud como condescendente, a capacidade maior de sublimação na realidade parece ser uma compensação que os homossexuais têm em relação ao fato de sua pulsão não ter se desenvolvido tanto quanto a dos heterossexuais em direção ao que a moral sexual espera dos indivíduos.

Todavia é importante levar em consideração a época em que Freud defendeu as suas ideias. A homossexualidade ainda era um crime punido até mesmo com a morte (nos campos de concentração). Além disso, Freud foi contra a decisão da IPA de impedir o ingresso de psicanalistas homossexuais (Ferenczi também). Freud também ao contrário de Reich e de Jung nunca rejeitou pacientes homossexuais.

De qualquer forma este trabalho não tem como objetivo julgar a perspectiva freudiana em relação à homossexualidade, visto que, o objetivo do trabalho é estudar a criação artística.

O foco deste trabalho não é o estudo das mudanças que a moral sexual “civilizada” sofreu desde a época de Freud, porque tanto a psicanálise quanto a arte têm um tempo que não coincide com o tempo da história, cronológico. Isto não quer dizer, que o contexto histórico não tenha uma influência sobre os fenômenos estudados pela arte e pela psicanálise, mas, que uma relação direta entre um e outro como propõe Camille Paglia é pobre porque perde justamente o que a arte e a psicanálise têm de mais específico.

Relacionar homossexualidade e criação artística como fez Paglia ignora o fundamental da proposta psicanalítica que é a realidade psíquica, se prendendo a fatores externos. A sublimação, por outro lado, oferece uma via de compreensão a partir da pulsão, portanto, a partir do próprio psiquismo. Este é um caminho mais difícil e por isso mesmo, menos trilhado por outros trabalhos que adotam um conceito de realidade diferente, mais empírico, uma realidade social.

[1] “La constitución de los aquejados de inversión, los homosexuales, se singulariza incluso por una particular aptitud de la púlsion sexual para la sublimación cultural” (FREUD, 1908, p. 170).


[2] “En personas que no presentan ninguna otra deviación grave respecto de la norma [e] en personas cuya capacidad de rendimiento no sólo no está deteriorada, sino que poseen un desarrollo intelectual y una cultura ética particularmente elevados [além disso] es preciso considerar que en pueblos antiguos, en el apogeo de su cultura, la inversión fue un fenómeno frecuente, casi una institución a la que se confiaban importantes funciones” (1905, p. 126).


[3] “Debe conceder-se a los portavoces del ‘uranismo’que algunos de los hombres más destacados de que tenemos noticia fueron invertidos” (Ibid., p. 17).


[4] “En la concepción sobre la inversión, los punto de vista patológicos han sido substituido por los antropológicos. Este cambio es mérito de Iwan Bloch (1902-03), autor que ha destacado expresamente el hecho de la inversión en los pueblos civilizados de la Antigüedad” (p. 127).


[5] “The experience of passing is often productive of a gay sensibility. It can, and often does, lead to a heightened awareness and appreciation for disguise, impersonation, the projections of personality, and the distinctions to be made between instinctive and theatrical behaviour” (apud DYER, 1987, p. 154).


[6] “The anarchic and the political, the anger and the boredom, are all active in Wilde’s transgressive aesthetic, and most especially when the survival strategies of subordination – subterfuge, lying, evasion – are aesthetically transvalued into weapons of attack, but ever working obliquely through irony, ambiguity, mimicry, and impersonation” (1991, p. 310).


[7] “camp is also a turning point of the second set of categories – theatricality, irony, and a sense of the absurdity of extreme feeling – onto the first, such that the latter – authenticity, intensity, the fierce assertion of extreme feeling – if they remain at all, do so in a transformed state” (p. 311).


[8] “Is situated at the point of emergence of the artificial from the real, culture from nature – or rather when and where the real collapses into artifice, nature into culture; camp restores vitality to artifice, and vice versa, deriving the artificial form, and feeding it back into or as, the real. The reality is the pleasure of unreality. And the primacy of fantasy [...] Camp knows and takes pleasure in the fact that desire is culturally relative” (p. 312).


[9] “Is this sensibility transcultural, or historically rooted in the (varying) histories of the representation of homosexuality? Is it a direct expression of homosexuality, or an indirect expression of its repression and/or sublimation? Is it definied in terms of the sexuality of (say) the individual or artist who expresses or possesses it – and does that mean that no non-homosexual can possess/express it? [...] there is a sense in which the very notion of a homosexual sensibility is a contradiction in terms” (Dollimore, 1991, p. 308).


[10] “The search for the nature of the distinctively gay sensibility can be productively redirected as an exploration of the limitations of the aesthetic as conventionally understood, especially the way it is said to transcend the socio-political, and used in support of the proposition that discrimination is the essence of culture”.


[11] “Puis-je vous demander pourquoi vous l’évitez? L’homosexualité n’est evidemment pas un avantage, mais il n’y a là rien dont on doive avoir honte, ce n’est ni un vice, ni un avilissement et on ne saurait la qualifier de maladie; nous la considérons comme un variation de la fonction sexuelle, provoquée par un certain arrêt du développement sexuel” (Freud, 1935, apud Borrillo, 2005, p. 347).

 
 
 

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