REFLEXOS: SOBRE A FUNÇÃO ESPECULAR NA RELAÇÃO TERAPÊUTICA
- Hugo Francisco Ramos Nogueira
- 18 de mar. de 2019
- 19 min de leitura
Um estudo do meu primeiro caso clínico. Anais da IV Jornada do Serviço de Psicologia Aplicada - Departamento de Psicologia da PUC-Rio
Neste trabalho procuramos desenvolver o conceito de função especular humana e pensar sobre a sua utilização no processo terapêutico . Tomamos como ponto de partida um texto de Carlos Doin (1985) que procura mostrar “como os seres humanos funcionam de um modo semelhante aos sistemas de espelhos paralelos, em que um mostra o que acha, sente e pensa do outro, que está diante de si”(op.cit:147).Enfocamos a importância desta função para o desenvolvimento do indivíduo e de suas funções psíquicas. Nas palavras do autor, “a função especular destina-se ao conhecimento de si mesmo, à aquisição e consolidação da identidade e à integração mental, por intermédio de outra pessoa” (op. cit: 7)
Doin baseia-se em pontos de vista teóricos que pressupõem que o ser humano nasceria com "pré- concepções" de eu e não-eu, que tenderiam a transformar-se em concepções diferenciadas e integradas, no contato com percepções, através dos relacionamentos pessoais, a partir da relação primária com a mãe. Além da referência ao conceito freudiano de identificação, suas outras fontes são Melanie Klein, Bion, Kohut e Winnicott. Sua contribuição original refere-se à categorização da função especular como primária, que ocorre no início da vida, podendo ter um caráter integrador ou não integrador, e secundária reintegradora ou desintegradora, referente às experiências ao longo da vida.
Pela função especular humana integradora primária, posta a serviço da integração somato-psíquica e do narcisismo normal, o bebê inicialmente se identifica e aprende a se reconhecer na sua imagem projetada na mãe e refletida por ela . O bebê, nos primeiros meses de vida, tem a oportunidade de vivenciar a experiência de ser um com a mãe, tendo esta a responsabilidade de organizar o caos primitivo de sensações e emoções que acometem seu filho. De forma lenta e oscilante a criança desenvolve auto-percepção e auto-estima, autenticando o que é "eu" ou self , num processo de relação objetal em que ambos são ativos. Freud (1914) referiu-se a este processo quando , introduzindo o conceito de narcisismo, afirmou que não existe, no início da vida, uma unidade comparável ao ego; o desenvolvimento desta instância implica a necessidade de que algo seja acionado no auto-erotismo já existente - uma nova ação psíquica - "para que seja provocado o narcisismo"(1974:93). É no encontro do narcisismo nascente do bebê e do narcisismo revivido dos pais que se cria um espaço, em torno do berço de Sua Majestade o Bebê, para "os votos das fadas", segundo uma poética expressão de Perrier. ( apud Nasio , 1989).
É importante enfatizar a diferença entre a relação com o espelho físico e a função especular humana, sendo esta “bilateralmente ativa”. Doin acrescenta:
“... o self não é meramente um reflexo passivo. O mecanismo de formação do self não se pode comparar (equiparar) à função dum espelho (físico). Se quisermos usar a metáfora do espelho, teremos que especificar que nos referimos a um espelho ativado, que acrescenta suas próprias distorções às imagens refletidas, especialmente aquelas distorções causadas pela cognição primária, numa idade muito precoce. A criança não responde meramente ao ambiente. Ela integra experiências e as transforma em realidade interna, em estruturas cada vez mais complicadas”(p.153).
Ao longo da vida a função integradora, diz ainda este autor, (1985:14), "exige condições de afeto, compreensão e autenticidade, para que possa cumprir-se o preceito délfico: Conhece-te a ti mesmo". Winnicott (1975:155-157) marca suas repercussões na vida do indivíduo: "Quando olho, sou visto; logo existo. Posso agora me permitir olhar e ver. Olho agora criativamente e sofro a minha apercepção e também percebo. Na verdade protejo-me de não ver o que ali não está para ser visto".
É a partir da vivência ilusória da fusão com a mãe-espelho que a criança vai, aos poucos, perceber as diferenças que demarcam a representação do seu eu em confronto com a representação da mãe, para gradativamente aceder a formas mais evoluídas do narcisismo e à função integradora secundária. Esta se realiza ao longo de toda a vida por meio de todos os níveis da comunicação humana, nos encontros com outros diferenciados que, reconhecendo e respeitando as características individuais, organizam e refletem uma imagem razoavelmente fiel da pessoa, que com ela se identifica .
Kohut enfatiza a posição do analista como um objeto que “só é importante na medida que é convidado a é a participar no prazer narcísico da criança para confirmá-lo”; “... a transferência especular reinstalação daquela fase normal do desenvolvimento do grandioso self, em que o brilho do olhar da mãe, que espelha a apresentação exibicionística da criança, e outras formas de participação e respostas maternas frente ao prazer exibicionista narcísico do filho, confirmam a auto-estima deste ...” (em: Doin op. cit:.157).
Winnicott (1967:130 e segs.), no artigo "O papel de espelho da Mãe e da Família, no Desenvolvimento Infantil" afirma que:
"Sentir-se real é mais do que existir; é descobrir um jeito de existir sendo o próprio e de relacionar-se com os objetos sendo o próprio e de ter um eu onde possa se recolher e ficar à vontade (....)À medida que a criança se desenvolve(...) e as identificações se multiplicam, a criança se torna cada vez menos dependente do recurso de obter de volta o seu self a partir do rosto da mãe, do pai e de outras pessoas com quem se encontre num relacionamento fraternal ou tipo filho/genitor. No entanto se a família permanecer inteira e prestimosa, por um bom tempo a criança tirará benefícios do poder ver-se na atitude de cada parente ou nas atitudes da família como um todo. Podemos incluir nisto tudo, tanto os espelhos reais que existem em casa, quanto as oportunidades que a criança tem de ver os pais e as outras pessoas olhando-se a si mesmos. Deve-se, porém , compreender que a importância do espelho real está principalmente no seu sentido figurado. Pode-se deste modo atestar a contribuição da família ao crescimento e enriquecimento da personalidade de cada um de seus membros, considerado como indivíduo ".
O estádio do espelho é de extrema importância na visão lacaniana no que diz respeito ao desenvolvimento humano. Sem dúvida o trabalho de Lacan , Le Stade du Miroir (1949) influenciou Winnicott , mas Lacan não pensou em espelho em termos do rosto da mãe. Winnicott nos faz a seguinte pergunta: O que é que o bebê vê, quando olha para o rosto da mãe? Responde sugerindo que normalmente o que o bebê vê é ele mesmo, sendo o rosto da mãe o precursor do espelho.
É importante fazer a ressalva que muitos bebês não recebem de volta o que estão dando, ou seja , olham e não vêem a si mesmos. Caso o rosto da mãe não reaja adequadamente, o espelho não constitui algo a ser examinado mas apenas olhado. Neste caso, podemos concluir que a face da mãe não é um espelho pois esta é incapaz de reconhecer a singularidade de seu bebê, fazendo com que este se submeta e acomode às insuficiências dela. Logo, a percepção toma o lugar da percepção de si mesmo, ou melhor, do que podemos chamar de apercepção, trazendo uma inibição da capacidade criativa.
Isto caracteriza a função especular não-integradora, que não realiza os propósitos do narcisismo normal na relação com a mãe (aquisição de vivências definidas de individualidade, vitalidade e continuidade), e tende a deixar um saldo crônico de insatisfações e angústias narcísicas de aniquilamento, desvitalização e auto-estima reduzida. A perda do objeto capaz de alimentar a ilusão narcísica de plenitude produz um esvaziamento do eu que deixará marcas tão mais profundas quanto mais precoce e radical tiver sido a ausência. "Não seria terrível se a criança olhasse para o espelho sem que nada visse?" pergunta uma cliente de Winnicott(1975:160).
Neste ponto, nós, profissionais da área de saúde, somos convidados à reflexão sobre a utilização terapêutica da função especular já que, no decorrer da psicoterapia, devolvemos ao paciente aquilo que ele nos traz. Como vimos em nosso trabalho, só através do uso adequado de tal função, perpassando pelo afeto, confiança básica e desejo da verdade, presentes em nossa prática clínica, conseguiremos ser eficientes como espelhos lúcidos, confiáveis, onde o sujeito será capaz de existir e sentir-se como real.
Podemos pensar que quando um espelho não é capaz de refletir uma imagem, é porque não há luz suficiente; não conseguimos ver ou apenas vemos muito pouco do que está lá para ser visto. Como numa sala escura, os reflexos não existem; resta apenas a possibilidade de imaginar e conviver com fantasias e fantasmas. Talvez, esta iluminação só possa ser dada pelo “brilho do olhar” de um outro que tenha coragem de entrar neste ambiente misterioso e aparentemente assustador e, tateando, investigando com a ajuda de quem está lá dentro, encontrar o que de fato habita este lugar.
Caso clínico
A mãe de Daniel ( nome fictício) procurou ajuda para o seu filho com a seguinte queixa: “D. não se interessa em aprender na escola e ainda não conseguiu se alfabetizar” (sic).
Na entrevista de plantão a mãe se apresentou bastante ansiosa. Segurava a bolsa no colo de forma firme e com os punhos fechados. Ao falar pressionava a bolsa no colo mantendo-se na mesma postura durante toda a entrevista. Disse que não sabia mais o que fazer: “ bater não está resolvendo pois ele continua sem aprender e sem interesse pelos estudos”(sic).
Inconformada com o desinteresse do filho, a mãe não entendia por que ele não conseguia aprender. Achava que era preguiça e ficava muito irritada e com raiva, terminava batendo e chamando-o de burro quando ele não conseguia fazer as lições da escola. Essa situação estava deixando a mãe muito frustrada, culpada e triste por agir assim. Conseqüentemente, não dava limites consistentes para D. quando era preciso. Dizia por exemplo que quando ele não conseguia aprender ele mesmo justificava com ar de deboche que era porque ele era burro e desobedecia mesmo depois de apanhar. D. dizia ter consciência de não estar agindo certo com o filho e achava que se continuasse agindo dessa forma ele iria se tornar “um marginal quando crescesse”(sic).
Daniel foi uma criança planejada e desejada pelos pais, mas o nascimento foi traumático: o parto foi induzido e D. nasceu puxado a forceps, houve sofrimento fetal. D sofreu um grande hematoma e aspirou líquido, ficando 10 dias no CTI. A mãe permaneceu com o filho no hospital durante o tempo de internação. Assim, a criança idealizada não foi a criança realizada, e podemos sugerir que desde o inicio houve prejuízos na função especular primária.
D. era descuidado com os seus objetos pessoais e estava sempre perdendo as coisas. Não conseguuia conservar os brinquedos e quando os ganhava, em questão de dias os perdia ou os quebrava.
D. também não parava em casa quando os pais estavam, evitando ficar na companhia deles. Assim que os via chegar do trabalho, corria para a rua e para a casa de amigos, retornando bem tarde já na hora de dormir.
Tendo sido realizada uma avaliação psicodiagnóstica, foi indicada uma psicoterapia para Daniel , enquanto a mãe permaneceu em acompanhamento durante todo o processo.
Atendimento de Daniel , o menino com um espinho na carne
Daniel apresentou-se, como na música dos Smiths, como “um menino com um espinho na carne”. Levei um tempo até perceber que como na música ele também trazia “por trás do ódio nos seus olhos: um desejo violento de amor” e finalmente encontrei no seu silêncio as mesmas perguntas da música: “e quando você quer viver: por onde começar? Onde ir? Quem você precisa conhecer?”.
Daniel foi meu primeiro paciente e me deixou assustado. Trazia no rosto uma expressão de raiva e não se interessou por nenhum dos brinquedos da caixa, até que finalmente pegou alguns soldados e iniciou uma batalha em que um soldado enfrentava todos os outros. Essa foi a chave que usei no seu atendimento, ele estava me comunicando o quanto sentia-se sozinho para enfrentar um mundo que percebia como hostil. Ainda assim não foi fácil tornar-me seu parceiro. Daniel estava muito magoado com o que o mundo havia lhe oferecido até então. Seus pais, apesar de interessados, eram ausentes e incapazes de perceber o que lhe faltava para além das suas necessidades materiais.
Daniel estava precisando de um cuidado maior, de uma nova chance, um reinício de vida, em que todas as suas necessidades fossem atendidas criando pelo menos por um momento um novo período de ilusão para que ele se fortalecesse e pudesse estabelecer uma nova relação com o mundo, desta vez positiva. O trabalho com a mãe mostrou ser indispensável, a fim de que ela pudesse ser finalmente ou novamente a mãe suficientemente boa. É possível no caso de Daniel suspeitar que a função especular primária não foi suficientemente integradora. A gravidez foi desejada mas o parto foi complicado (como já foi dito, com sofrimento fetal). No início não sugava bem e até os dois anos só conseguiu dizer papai e mamãe, relutou muito a ir para a escola, onde só aceitou ficar sem chorar aos seis anos. Hoje, aos nove anos, Daniel ainda não foi alfabetizado e não consegue dar um troco.
Do ponto de vista das funções especulares secundárias, podemos dizer que essas não estavam cumprindo uma função reintegradora: Daniel estava sendo discriminado pelos amigos por ter os dentes tortos, a escola estava cobrando um rendimento melhor e sua própria mãe o chamava de burro, até que uma amiga lhe chamou atenção para o tipo de espelho que estava sendo para o seu filho. Será que nesse espelho ele podia ver suas qualidades ou só os seus defeitos? Foi nesta situação que, depois de uma resistência inicial, a psicoterapia começou .
Como psicólogo, fui para Daniel, sobretudo, uma presença constante, que não estava ali para julgá-lo mas para permitir que ele aparecesse como ele realmente é, com suas diferentes faces, as quais estavam escondidas sob a máscara de insatisfação, à primeira vista inquebrável. Daniel encontrou no psicólogo uma relação que não conhecia, ao mesmo tempo assimétrica e de igualdade e revelou-se interessado em brincar, aprender, trocar, tudo dentro do seu próprio ritmo. A psicoterapia foi o ponto de partida de uma série de funções especulares secundárias reintegradoras, dentro do setting propriamente dito mas também fora dele. Daniel passou por uma avaliação psiquiátrica e começou um tratamento fonoaudiológico. Ter ao menos um pouco da sua sede de atenção saciada era o que Daniel precisava para revelar ao mundo algo que vinha escondendo: seu sorriso. Aos poucos Daniel foi recuperando ou quem sabe adquirindo confiança e auto estima suficientes para encarar o mundo com a cabeça erguida. Seus pais descobriram quais eram as suas demandas mais urgentes: a fonoaudióloga, o dentista para colocar o aparelho nos dentes e principalmente mais atenção e acolhimento da parte deles mesmos.
Mãe e filho começaram a encontrar ou recuperar a capacidade de trocar, de se apoiar e enfrentar juntos as dificuldades. A mãe pôde finalmente começar a ver seu filho além das cobranças, enquanto Daniel encontrou na mãe e em outras pessoas os companheiros para a sua batalha, que deixou de ser solitária.
Destaco alguns momentos significativos do atendimento, os quais servem como ilustração do andamento do processo:
A construção realizada no Cenoteste, que apresentou o isolamento inicial. Desprezando o variado material lúdico disponível neste teste, Daniel arrumou apenas cubos na parte superior esquerda da cena formando um bloco maciço.
O resultado do teste Bender, que revelou o desenvolvimento cognitivo encoberto pelas questões afetivas (idade mental inferior à idade cronológica).
O resultado de um segundo Bender, feito a pedido do paciente em uma das últimas sessões, que teve como resultado uma idade mental superior à idade cronológica.
- Durante a última sessão de acompanhamento de Daniel, perguntei se ele queria levar algum brinquedo da caixa; ele respondeu que já tinha tudo o que precisava.
Alguns comentários:
Ao longo do tratamento, na medida em que a mãe é orientada a procurar ajuda de outros profissionais passa a perceber o seu filho através do olhar diferenciado e mais positivo desses profissionais. Essa experiência amplia a sua visão da queixa, ao mesmo tempo em que a sensibiliza para os aspectos afetivos da sua relação com Daniel. Neste sentido podemos pensar que o olhar desses profissionais exerceu uma função especular integradora secundária, não só para a criança, que via a sua imagem refletida em outros espelhos, mas também contribuindo para modificar o olhar negativo da mãe, que passou a refletir uma imagem menos destorcida e mais integrada da criança.
Como exemplo da função especular integradora secundária, gostaria de destacar aqui uma sessão com a fonoaudióloga que foi extremamente impactante e, contribuiu para ampliar o entendimento da mãe das dificuldades da criança a partir de uma valorização do aspecto afetivo da relação mãe-filho. Durante esta sessão, a fonoaudióloga colocou D. numa rede e ao mesmo tempo que o embalava cantava cantigas infantis para ele. A mãe ficou muito emocionada com a forma carinhosa e gentil com que a fonoaudióloga interagiu com D. Ao me descrever a sua observação,a mãe chorou muito e disse que “foi muito difícil e bonito ver uma pessoa estranha tratar Daniel com tanto carinho, do jeito que eu não conseguia” (sic).
Aos poucos os diferentes olhares e formas de entendimento das dificuldades do D. transmitidos pela equipe multidisciplinar começaram a exercer uma influencia no comportamento da mãe, que passou a não mais chamá-lo de burro ou bater para que ele aprendesse e obedecesse.
D. começou a responder positivamente a esses diferentes olhares, inclusive ao da mãe. Ela passou a investir mais do ponto de vista afetivo na relação como a criança dando-lhe uma atenção mais cuidadosa (por exemplo, ambos iam tomar sorvete após as sessões no SPA), passando a elogiar os seus pequenos progressos. D. passou a surpreender a mãe, que nas sessões relatava com alegria e algum espanto as modificações observadas no comportamento da criança.
Exemplificando, a mãe relata com ar de admiração o maior interesse do Daniel em vir à PUC (no começo ele demorava para se arrumar e para sair de casa), os elogios da fonoaudióloga pela atenção durante os exercícios de repetição, o cuidado com a limpeza e uso do aparelho ortodôntico, a maior responsabilidade em fazer as tarefas da escola, além de estar procurando ficar mais em casa na companhia dos pais.
Criou-se nesse processo de tratamento possibilidades para que a mãe, a partir dos diferentes olhares dos profissionais, refletisse no seu olhar uma imagem diferente da a criança. Essa possibilidade de ser olhado permitiu a D. por sua vez olhar e ver, de modo a interagir como o mundo apreendendo os objetos e sendo mais criativo. O olhar mais integrador da mãe permitiu que D. começasse a confiar na sua capacidade de receber e produzir coisas boas. Assim a criança passou a se mostrar para o mundo e não mais se esconder dele.
Finalizando, Daniel passou a cuidar mais da sua aparência e higiene. Deixou ainda de ser o menino que não gostava de aparecer em fotografias, que havia recusado veementemente, no seu aniversário meses antes, a posar para fotos da festa. No dia do aniversário da irmã, Daniel foi o primeiro a se arrumar, pedindo permissão para colocar o seu sapato novo e, insistindo para tirar fotografias com a família..
Referências bibliográficas
DOIN, C. (1989) Espelho e pessoa. In:: Mello Filho, J (org) O ser e o viver. Porto Alegre, Artes Médicas
FREUD, S. (1914) Sobre o narcisismo: uma introdução. Ed. Standard Brasileira das obras de Sigmund Freud, vol XIV. Rio de Janeiro, Imago, 1974
NASIO, J D. ( 1989) Lições sobre os 7 conceitos cruciais da Psicanálise. Rio de Janeiro, Zahar
WINNICOTT, DW (1975) A função de espelho da mãe e da família no desenvolvimento da criança.In: Winnicott, DW O Brincar e a realidade. Rio de Janeiro, Imago.
Comentário sobre o trabalho: Reflexos: sobre a função especular na relação terapêutica.
Sergio Medeiros
Gostaríamos de começar este comentário pela citação que os autores fazem do texto freudiano acerca do narcisismo (Freud, 1914c). Neste trabalho Freud irá propor que o Eu e o Narcisismo não existem desde o início. Ambos tem no auto-erotismo seu alicerce e o segundo reclamaria uma “nova ação psíquica” para acontecer. Entretanto, Freud conclui seu histórico artigo sobre o narcisismo sem nos esclarecer acerca do que seria, ou sobre o que motivaria esta nova ação psíquica.
Em 1915, no entanto, no artigo metapsicológico sobre as pulsões (1915c) o criador da psicanálise parece nos fornecer algumas pistas.
(...) “o ego auto-erótico não necessita do mundo externo mas (...) não pode evitar sentir como desagradáveis, por algum tempo, estímulos instintuais internos.” [Freud, S.; “Os Instintos e suas Vicissitudes” (1915); Standard Edition Vol. XIV; p.139; Ed. Imago (os grifos são nossos)]
Neste pequeno fragmento, Freud retoma idéias antigas, como o Princípio da Constância (Freud, 1950a, parte I, seção 8); conceitos mais recentes, como o Princípio do Prazer (Freud, 1911b); e formulações que ainda serão apresentadas, elaboradas ou ampliadas (Freud, 1920g e 1924c). A partir destes últimos trabalhos, podemos afirmar então que é a Pulsão de Morte (Freud, 1929g e 1930a) que empurra o sujeito em direção a uma organização psíquica mais eficiente, ou mais sofisticada, com o intuito de afastar os “estímulos instituais internos desagradáveis”. Assim, é porque o Eu é faltoso e sofre, que se altera.
Talvez uma arqueologia do conceito de narcisismo em Freud nos aponte três momentos: um narcisismo primordial contemporâneo ao Eu-real e indiferente ao mundo externo; um narcisismo primário, herdeiro do anterior e que ao relacionar-se com os objetos externos - seguindo o programa do princípio do prazer - estabelece o Eu-prazer; e um narcisismo secundário, marcado pelas aspirações sublimadas que caracterizam o ideal do Eu.
Bem, sabemos agora o que motiva a “nova ação psíquica” mencionada por Freud e citada pelos autores. É para distanciar-se da angústia decorrente dos “estímulos instituais internos desagradáveis” que a estruturação do Eu avança. Entretanto, ainda não respondemos como acontece a nova ação psíquica ou mesmo o que ela é.
Acreditamos poder encontrar uma resposta no tema trazido pelos autores: “Reflexos: sobre a função especular na relação terapêutica” .
De fato, há neste Eu-prazer, uma radical carência de ser. Faltam-lhe seus contornos, um perímetro que o separe dos estímulos externos ou das demandas que partem do campo do outro.
A precária existência do Eu nos faz pensar em outro momento também inaugural. Gostaríamos, neste momento, de recuar para além das fronteiras históricas da Psicanálise a fim de escutarmos a síntese kantiana: um dos marcos de fundação do pensamento moderno. Immanuel Kant, o filósofo da Aufklärung, já nos asseverava que o conhecimento não podia prescindir da forma. Tampouco, poder-se-ia aprender a coisa-em-si, ou o noumenon, apenas o fenômeno, isto é, o que se nos apresenta, é passível de se conhecer. E, exceto para Deus, é o conhecimento que dá testemunho da existência. Assim, para um dos mais notáveis pensadores de todos os tempos e iniciador do Iluminismo entre os povos germânicos, a existência pressupõe uma forma. E aqui encontramos a Estética como uma condição para o existir.
Também para Freud, seguramente leitor de Kant, é a imagem da coisa que a representa e empresta um significado à palavra, ou mais precisamente, à sua imagem sonora (Freud, 1891b e 1915e apêndice C)
Há, no entanto, um outro importante leitor de Kant e, sobretudo, de Freud, a quem devemos nos dirigir em busca de uma articulação entre forma e narcisismo. Trata-se de Jacques Lacan que nos dirá da fundação do Sujeito a partir de seus equívocos em torno do reflexo de sua imagem (Lacan, 1949 e outras ocasiões). Acerca do Estádio do Espelho, apresentamos o seguinte trecho que destacamos de sua comunicação ao XVI Congresso Internacional de Psicanálise:
Basta compreender o estádio do espelho como uma identificação, no sentido pleno que a análise atribui a esse termo, ou seja, a transformação produzida no sujeito quando ele assume uma imagem. (...) A assunção jubilatória de sua imagem especular por esse ser ainda mergulhado na impotência motora e na dependência da amamentação (...) parecer-nos-á pois manifestar, numa situação exemplar, a matriz simbólica em que o eu se precipita numa forma primordial, antes de se objetivar na dialética da identificação com o outro e antes que a linguagem lhe restitua, no universal, sua função de sujeito.(...) [Lacan, J. “O Estádio do Espelho como Formador da Função do Eu tal como nos é revelada na experiência psicanalítica”; “Os Escritos” (1949 [1998] p.96;97;98); Ed. Jorge Zahar]
Assim a imagem real, refletida no espelho, antecipa o Eu e serve de matriz simbólica para o Sujeito. É nesta totalidade harmônica e plena da imagem que um Eu, despedaçado e sem domínio motor se funda. Ainda sem fronteiras bem marcados entre o dentro-prazer e o fora-desprazer, este Eu toma sua imagem, costurada e alinhavada pelo olhar de quem o deseja, como a materialização de seu ser. Assim, como Eu-prazer ou Eu-Ideal o Sujeito se constitui como Objeto.
E se o Eu-prazer havia surgido como objeto da libido, destino das primeiras catexias, o Eu-Ideal do Estádio do Espelho se funda então em uma imagem que perfeita, apresenta-se como um outro para o fragmentado e estupefato Eu que a admira. Desta maneira, os limites entre o innerwelt e o unwelt (Lacan, op.cit.) assumem a perfeição das formas de um outro completo que captura, definitivamente, o olhar do Eu.
Aprisionado a uma “miragem de potência” (Lacan, 1946) o Eu-Ideal copia aquela forma e identifica-se com a plenitude daquele outro. Como Narciso, o Eu se engana e a partir do espelho de sua paixão que enuncia a perfeição de seu amor e a morte de seu ser, condena-se a buscar eternamente a completude, um atributo de quem tudo pode ser, menos Eu.
Ao falar da criança diante do espelho, Lacan se utiliza de expressões como “azáfama jubilatória”, “assunção jubilatória” ou “vivência de júbilo” (Lacan, 1949 e outras ocasiões). Se o júbilo diante da imagem plena é da ordem do prazer, gostaríamos de introduzir a formulação do Duplo (Freud, 1919h) como defesa contra a angústia da morte.
Para falar do investimento libidinal no Eu, Freud usou a metáfora da ameba e seus pseudópodes (Freud, 1914c p.83). Interessante é pensar na inexistência de uma forma estável para este organismo ao qual Freud comparou o Eu. De fato, como dissemos - a partir da formulação de Lacan - a primeira forma assumida pelo Eu é sua imagem no espelho (Lacan, 1936;1949 e outras ocasiões).
Entretanto, a prematuridade do Eu toma seu reflexo como um outro, um outro pleno, potente e perfeito que ao identificar-se a ele o equivocado Eu vê-se assim mais amparado. Fusionado a este que é muito mais do que o Eu poderia ser, haveria então alguma esperança de que o não-Eu, povoado pelo desprazer e ódio, seja derrotado em sua voracidade.
Assim, a função primordial do Duplo, antes dele tornar-se Estranho1 (Freud, 1919h), seria mitigar a angústia da precariedade do Eu que nasce disforme. A identificação com o Duplo, isto é, a constituição do Sujeito a partir de sua imagem, antepõe-se ou contém, ainda que parcialmente, a angústia do vazio informe.
Desta forma, o momento lógico do Estádio do Espelho consubstanciaria a existência do Eu criando-lhe a ilusão de uma representação fora de si próprio. Tal representação colocaria o Eu em um novo ângulo de mirada; para se ver, o Eu se olha de onde não está e lá, onde não é o seu lugar, só de um outro pode ser. É assim, do olhar do Outro que o Eu se vê.
Talvez agora possamos, tentar responder as questões que formulamos. Interessava-nos saber o quê seria a “nova ação psíquica” e a que ela se prestaria. Já havíamos encontrado, em Freud, a fuga do desprazer como sua causa. Propomos então que a nova ação é a própria fundação do registro do Imaginário, isto é, a aquisição da capacidade de criar uma imagem, desenhar uma forma que circunscreva o Eu e aplaque a angústia da não existência.
Os autores, no entanto, falam de uma função especular humana e citando Doin (1985) destacam: “a função especular destina-se (...) à aquisição e consolidação da identidade e à integração mental, por intermédio de outra pessoa”.
Através de outro trecho do mesmo autor afirmam:
“...o self não é meramente um reflexo passivo. O mecanismo de formação do self não se pode comparar (equiparar) à função de um espelho (físico). Se quisermos usar a metáfora do espelho, teremos que especificar que nos referimos a um espelho ativado, que acrescenta suas próprias distorções às imagens refletidas...”
Temos o prazer de concordar. Quem fornece os meios para se lidar com a angústia da Pulsão de Morte, ou os “estímulos internos desagradáveis”, é o amparo materno. É o espelho do olhar desejante da mãe que costura e alinhava uma estética para o precário Eu de seu bebê. E finalmente, é também na tentativa de sustentar este olhar, que o acolhe com amor que o bebê - e mais tarde, a criança - interpreta as demandas da mãe e posteriormente, dos outros relevantes.
Assim, é na trilha do desejo do Outro que o Sujeito faz suas identificações e cria através destas, um projeto para si ou um ideal para o seu Eu. Talvez aqui tenham começado os problemas de Daniel.
Como nos informa a sensibilidade de seu psicólogo, Daniel era um menino com um espinho na carne e que não sabia por onde começar ou aonde ir. De fato, para Daniel, não parecia haver alguma trilha a seguir. O caminho do desejo parece ter sido inaugurado pela fonoaudióloga. Um espelho de significantes para o filho que, com seu carinho, refletiu um significado para a mãe: seu fruto era valioso e por outro, poderia ser cobiçado.
Nossa curiosidade nunca nos leva aonde não queremos ir. Não nos interessa saber os caminhos da dor ou do desprazer. Talvez por falta de destinos, Daniel havia optado pela ignorância. Entretanto, quando seu psicólogo tornou-se seu parceiro, Daniel deixou de ser o soldado solitário e derrotado por seu ódio que havia transformado o mundo do não-Eu em um lugar hostil e perigoso. Como parceiro, o psicólogo tornou-se um duplo que ao mitigar a angústia, apresentou-se como traço de identificação e fonte de inspiração para a construção de um ideal para seu Eu.
Bibliografia
FREUD, S. – 1911 – “Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental”, Standard Edition, volume XII – Ed. Imago
_________. – 1914 – “Sobre o narcisismo uma introdução”, Standard Edition, vol. XIV – Ed. Imago
_________. – 1915 – “O instinto e suas vicissitudes”, Standard Edition, vol XIV, Ed. Imago
_________. – 1915 – “O Inconsciente”, Standard Edition, vol. XIV, Ed, Imago
_________. – 1919 – “O Estranho”, Standard Edition, Vol, XVII, Ed. Imago
_________, 1929 “Além do princípio do prazer”, Standard Edition, Vol XVIII, Ed. Imago
_________, 1924 – “O problema econômico do masoquismo”, Standard Edition, Vol. XIX, Ed. Imago
_________. – 1939 – “O mal estar na civilização”, Standard Edition – Vol XXI – Ed. Imago
_________. (1950) [1895] “Projeto para uma psicologia científica”, Standard Edition, vol. I, Ed. Imago
LACAN, J – 1949 – “O Estádio do Espelho como formador da função do Eu tal como nos é revelada na experiência psicanalítica” in “Os Escritos”, Jorge Zahar Editor
DOIN, C. – 1985 In “Reflexos especular na relação terapêutica”, Vergueiro Rodrigues e outros

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