top of page
Blog: Blog2

A escultura Narciso de Mestre Valentim

  • Foto do escritor: Hugo Francisco Ramos Nogueira
    Hugo Francisco Ramos Nogueira
  • 25 de fev. de 2019
  • 4 min de leitura

Quando a escultura Narciso de Mestre Valentim surgiu, o centro da cidade do Rio de Janeiro, não era mais o Morro do Castelo e estava situado onde é a atual Praça XV. Foi escolhido um lugar longe desse centro para a construção do Passeio Público.

Simultaneamente à construção do Passeio Público, foi construído o Chafariz das Marrecas e como decoração do chafariz, a escultura de Narciso, esta por Mestre Valentim. Nesta época, a cidade funcionava como porto de saída do ouro brasileiro para Portugal. Devido ao interesse de Portugal, esse período, do vice-rei Luís de Vasconcelos foi de muitas obras, entre as quais se destaca o Passeio Público.

Uma questão que o Chafariz das Marrecas suscita é a da dicotomia entre utilidade e beleza. Na realidade, segundo Wilde (1986), essa é uma falsa dicotomia, "não existe oposição alguma à beleza, excetuada a fealdade... a utilidade estará sempre do lado das coisas belas porque uma bela decoração é sempre expressão da utilidade que (encontramos) em algo e do valor que lhe (damos)".

Segundo Carvalho (1999), a escultura Narciso inaugurou "o novo olhar da urbe carioca, profanando-a com estatuária de caráter não religioso". O quarteirão inaugurado pela construção do Passeio Público e do Chafariz das Marrecas foi considerado um dos lugares mais aprazíveis da cidade e escolhido para construção de casas.

O intenso intercâmbio entre Portugal e o Rio de Janeiro pode explicar porque o estilo de Mestre Valentim é considerado mais moderno e mais português do que o de Aleijadinho. Está presente na estátua de Valentim, um novo homem, voltado para si mesmo e preocupado em garantir a sua eternidade aqui na Terra, construindo belas obras. O cachorro submisso e a ave abatida representam esse homem, que afirma sua superioridade em relação ao mundo da natureza. Todavia, o homem, como disse Descartes é movido por "espíritos animais" e pode ser vítima de suas paixões. É assim que Narciso passa de caçador à presa de si mesmo, ele encontrou seu espelho e este é interno, mergulhou na introspecção e abandonou a caça, a experiência sensível, porque encontrou seu maior objeto: ele próprio.

A sensualidade do corpo ganha expressão na estátua de Valentim. As roupas não escondem o corpo da estátua, elas criam um jogo de sedução. Uma perna musculosa aparece e todo o formato do corpo é delineado pelo drapejado. Todo o movimento da estátua sugere um auto-erotismo. Narciso está abraçando a si mesmo e a posição do arco sugere uma flecha imaginária que fere o próprio Narciso, o qual está hipnotizado pelo reflexo de sua imagem na água do Chafariz das Marrecas. Como não pode acariciar o reflexo, ele acaricia a si mesmo, indiferente à estátua da Ninfa Eco posta ao seu lado. A estátua de Narciso não é uma daquelas esculturas medievais, não visíveis ao observador que está no plano térreo, ela suscita uma relação com o observador. É difícil ficar indiferente diante da tragédia expressa na estátua de Narciso.

Valentim, como os artistas gregos, não estava entre as classes dos intelectuais e dos ricos. Todavia, assim como as obras de arte gregas, os trabalhos de Valentim são a melhor expressão de sua época. É na picada da flecha imaginária que fere Narciso, em sua dor penetrante, que a arte brasileira do século XVIII, manifestou seu gênio próprio. Junto à escultura Narciso, no Jardim Botânico do Rio de Janeiro, estão duas placas, uma conta uma versão do mito e a outra é uma crônica de Antonio Callado sobre o processo de reaproximação das estátuas de Narciso e Eco, que haviam sido separadas na transposição do Chafariz das Marrecas para o Jardim Botânico. Segundo Callado, apesar de Narciso estar novamente junto a Eco, ele "não tem jeito" (sic). A palavra jeito faz parte do vocabulário moral que a estátua de Narciso viu nascer. A indiferença de Narciso é lida como uma falta de caráter, porque foge do ideal do amor romântico, de parceria entre os sexos, forjado por Rousseau e entendido por Callado como receita única de felicidade. Por trás da condenação ao suposto significado do mito de Narciso e de suas representações está uma condenação à homossexualidade, à qual o narcisismo é relacionado. O senso comum faz essa relação, informada pelos primeiros estudos de Freud sobre o narcisismo. De fato, foi estudando a homossexualidade que Freud começou a estudar o narcisismo, mas esta identificação entre narcisismo e homossexualidade foi problematizada e tornou-se ingênua à luz do desenvolvimento posterior sobre o narcisismo pelo próprio Freud e outros psicanalistas.

Segundo o próprio Freud, o narcisismo pode ser atribuído a toda criatura viva, ele é necessário na estruturação do indivíduo. Nossos meios narcísicos são os meios que dispomos para enfrentar o impacto da diferença, do mundo mesmo. Não existe nenhuma chance de sair da fase narcísica, o que podemos é elaborar as questões narcísicas para ampliar a nossa capacidade de amar.

Acreditar que a estátua de Narciso não tem jeito é adotar uma visão estrita do mito; a imagem que Narciso viu refletida na água, como disse Melville citado por Rechy (1977), "we ourselves see... it is the image of the ungraspable phantom of life and it is the key to it all". Dyer (1993) explica que "cultural forms do not have single determinate meanings - people make sense of them in different ways, according to the cultural (including sub-cultural) codes available to them".


Referências


Carvalho, A. (1986). O Passeio Público e o Chafariz das Marrecas de Mestre Valentim. Gávea. Rio de Janeiro.

Carvalho, A. (1999). Mestre Valentim. São Paulo: Cosac & Naify. Dyer, R. (1993). The Matter of Images. London: Routledge. Rechy, J. (1977). The Sexual Outlaw. New York: Dell. Wilde, O. (1986). Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar.



 
 
 

Comments


©2019 by Hugo Nogueira. Proudly created with Wix.com

bottom of page